Saramago e a Música
Parabéns, José Saramago, pelo seu 84º aniversário hoje celebrado.
Como se sabe, a Música ocupa um lugar importante na sua Vida e na sua Obra.
Recordemos um excerto de "O Memorial do Convento" - ao som do cravo de Domenico Scarlatti.
* Allegro da Sonata para Cravo em Fá Maior K525 *
Domenico Scarlatti
Domenico Scarlatti
"- Parecem jogos de palavras, as obras, as mãos, o som, o voo...
- Disseram-me, padre Bartolomeu de Gusmão, que por obra dessas mãos se levantou um engenho ao ar e voou, Disseram a verdade do que então viram, depois ficaram cegos para a verdade que a primeira escondeu, Gostaria de entender melhor, Há doze anos que isso foi, desde então a verdade mudou muito, Repito que gostaria de entender, Que é um segredo, A essa pergunta responderei que quando imagino, só a música é aérea, Então iremos amanhã a ver um segredo, [...] A amargura é o olhar dos videntes, senhor Domenico Scarlatti, Um dia se há-de pôr isso em música, senhor padre Bartolomeu de Gusmão.
No dia seguinte, cavalgou cada um a sua mula e foram a S. Sebastião da Pedreira.
Na sua frente estava uma ave gigantesca, de asas abertas, cauda em leque, pescoço comprido, a cabeça ainda em tosco, por isso não se sabia se viria a ser falcão ou gaivota, É este o segredo, perguntou, Este é, até hoje de três pessoas, agora de quatro, aqui está Baltasar Sete-Sóis, e Blimunda não se demora, anda na horta. [...]
Domenico Scarlatti aproximou-se da máquina, que se equilibrava sobre uns espeques laterais, pousou as mãos numa das asas como se ela fosse um teclado, e, singularmente, toda a ave vibrou apesar do seu grande peso, cavername de madeira, lamelas de ferro, vime entrançado, se houver forças que façam levantar isto, então ao homem nada é impossível, Estas asas são fixas, Assim é, Nenhuma ave pode voar sem bater as asas, A isso Baltasar responderia que basta ter forma de ave para voar, mas eu respondo que o segredo do voo não é nas asas que está, E esse segredo não o posso saber eu, Não posso dar mais que mostrar o que aqui se vê, Já isso basta para que eu agradeça, mas, havendo esta ave de voar, como sairá, se não cabe na porta.
Baltasar e o padre Bartolomeu Lourenço olharam-se perplexos, e depois para fora. Blimunda estava ali, com um cesto cheio de cerejas, e respondia, Há um tempo para construir e um tempo para destruir, umas mãos assentaram as telhas deste telhado, outras o deitarão abaixo, e todas as paredes, se for preciso.
O padre Bartolomeu Lourenço foi encostar uma escada à passarola. Senhor Scarlatti, se quiser ver por dentro a minha máquina de voar... Subiram ambos, o padre levava o desenho, e lá dentro, andando sobre o que parecia um convés de barco, explicou as posições e funções das diversas partes, os arames com o âmbar, as esferas, as lamelas de ferro, repetindo que tudo actuava por atracção mútua, mas não falou do sol nem do que haveriam de conter as esferas, porém o músico perguntou, Que coisa atrairá o âmbar, Talvez Deus, em quem toda a força mora, respondeu o padre, O âmbar atrairá que coisa, O que estiver dentro das esferas, Esse é o segredo, Sim, esse é o segredo, É mineral, vegetal ou animal, Não é mineral, nem vegetal, nem animal, Tudo é mineral, ou vegetal ou animal, Nem tudo, há coisas que o não são, a música, por exemplo. Padre Bartolomeu de Gusmão, decerto não quer dizer-me que estas esferas vão conter música, Não, mas tenho de pensar nisso, afinal pouco falta para que me erga eu ao ar quando o ouço tocar no cravo, É um gracejo, Menos do que parece, senhor Scarlatti.
Entardecia quando o italiano se retirou. O padre Bartolomeu Lourenço passaria ali a noite [...]. À despedida, disse, Senhor Scarlatti, quando o enfadar o paço, lembre-se deste lugar, Lembrarei, por certo, e, se com isso não perturbar o trabalho de Baltasar e Blimunda, trarei para cá um cravo e tocarei para eles e para a passarola, talvez a minha música possa conciliar-se dentro das esferas com esse misterioso elemento [...].
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José Saramago, decerto que a Música da sua Palavra e da sua Escrita já chegou às esferas...
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* A1 - Reportagem esta manhã, em directo de Azinhaga, berço de José Saramago (10 m) *
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Alguns links de interesse:
A Ópera "Ensaio sobre a Cegueira"
Saramago no Cinema e no Teatro
Conferência aquando da entrega do Prémio Nobel em 1998 (42 m)
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